Olá, este é o primeiro conto do livro Bola da Vez. Foi escrito na época em que o livro se passa, 1994.
Após algumas reescritas, mudanças e retoques, eis que ele chega ao livro trazendo 28 outros contos que de alguma forma dialogam com ele. João é o centro do mosaico-mandala. Na sua primeira versão, chamava-se: Bola da Vez, nome que acabou emprestando ao livro.
Seja bem vindo.
João
Todo enrolado com dinheiro e piorava sua história com manias de bondade. Assim era João. João Aparecido dos Santos, João. Bom como poucos e pobre como todos que viviam ali: nos cortiços do Bixiga. Ilhados entre a Paulista e o Centro, resistindo horizontais e rueiros na São Paulo de prédios, muros altos e ruas vãs.1994.
João sempre esteve ali. Negro, forte, vivendo e caminhando da mesma forma: constante, seguro, sem pressa. Era como se houvesse nascido no primeiro quilombo nas margens do Rio Saracura e permanecido no Bixiga por dois séculos. Sobrevivia de bicos e do pequeno soldo de sargento reformado do exército - há mais de 30 anos. Entrou no cortiço de Dª Diva já sem a farda e sem a pressa. Nunca mais saiu dali.
Executava qualquer pequeno serviço nas casas, bares e lojas da Bela Vista. Era o quebrado, o torto, o feio, o fora de lugar que o incomodava.Primeiro ver direito, depois ver dinheiro – dizia a quem lhe contratava os serviços e a meticulosa de-dicação. Não conheceu emprego, salário, carteira, PIS, INSS e outros fantasmas - como ele dizia e completava - tenho medo dessas coisas.Trabalho é bom, mas o papel endurece a alma e cria amor pelo dinheiro, único amor que não presta - filosofava para aqueles que mantinham empregos regulares ou reclamavam por não tê-lo.
João já passava dos setenta e a idade trouxe em calma e clareza o que tirou de força. Sua ocupação real era cultivar amigos, gestos e pensamentos suaves pelas ruas do Bixiga e no bar de Chico da Burra. Dali, vigiava o passar tranqüilo dos dias e o intranqüilo das pessoas. Se brigar melhorasse a vida, galo de rinha não virava canja - brincava, com seu jeito boa praça e convivia com todos.
Teimava mesmo só em dois assuntos: jogo e finanças. Sempre invertia a bola branca com a bola sete no jogo de bilhar. Equilíbrio – explicava – branco batendo em preto já tem muito por aí, só jogo se inverter – e sorria ao adversário. A outra teima era ignorar conselhos sobre dinheiro: mão-aberta. Emprestava o pouco que sobrava entre os bicos e o soldo para qualquer um que pedisse. Sem preocupação em receber.
Os amigos ora pediam o empréstimo, ora pediam para que guardasse dinheiro. E as respostas eram sempre as mesmas, emprestando ou devolvendo o conselho: mortalha não tem bolso, caixão não tem gaveta. João recebia qualquer coisa como pagamento: reconhecimento, tapinhas, pingas, patuás, discursos, promessas de pouso e outros desvalores. Não se importava.Pagavam com o que não era pagamento e ele aceitava, agradecido e sem jeito de receber. – Não precisa...
Assim, pagaram-lhe um troco – emprestado para o remédio da criança e mamado no gargalo da cachaça – com um bilhete da federal: borboleta, já vencido. João não ligava. Aceitou, enrolou no dedo, enfiou no bolso da camisa e esqueceu.
Na semana seguinte, quarta-feira, tendo de usar a mesma camisa, não lavada, pois faltaram com o serviço - pago adiantado - de lavarem sua roupa naquela semana, acordou bem cedo e foi para a Treze de Maio cevar um bico para fechar o mês. O sol anunciava um dia quente e João caminhava ao encontro das grandes cantinas, da Achiropita e dos bicos que valiam a pena. Com o bilhete no bol¬so, caiu na tentação de conferir. Folheou por folhear as listagens da Caixa à porta da lotérica. Conferiu duas vezes: borboleta na cabeça, centena e milhar, bilhete de ponta a ponta premiado.
- Muita sorte rima com morte - disse a si mesmo, nocauteado. A manhã perdeu o rumo como suas pernas na Praça Don Orione. No bolso, o bilhete pesava como uma acusação. Estava imprestável para o trabalho.Resolveu escutar o estômago: mau conselheiro, mas bom companheiro. E o estômago vazio levou-o a uma padaria na Nove de Julho. Moderna, barulhenta, colorida, com muitas luzes e televisão ligada. As tevês vieram para a Copa do Mundo - terminada há três dias - e não davam sinais de saída. Lugar ideal para não pensar.
- Francês aquecido, pouca graxa. Um pingado! - gritou um balconista aos outros enquanto João olhava sem interesse a televisão que ainda falava na final da Copa sem graça e sem gols. João comeu e nem sentiu o gosto, pagou e saiu, sem fome nem solução. Bom companheiro, mas mau conselheiro.
Caminhou ao sol como se um fantasma o seguisse e chegou ao bar de Chico da Burra ofegando um remorso de dívida. O dono do bilhete deu sem saber, pagando o que não precisava pagar, não sabia do prêmio – pensava agitado - se soubesse ele não me dava, esse encosto não é meu – concluiu, sem saber o que fazer.
Givair entrou no bar com um bom dia intranqüilo. Eram amigos desde sempre. João viu Givair chegar ao Bixiga, se enrolando nas pernas da mãe, jogando bola na rua, na várzea, ficando moço, se enrolando em pernas de moças. Sentia-se responsável por Givair. O menino ficou órfão muito cedo e terminou de se criar por aquelas calçadas. Era um mulato alto, grande, jeito ameninado mesmo beirando os cinqüenta.
Estavam sem assunto, ambos carregando silêncios, de dentro do bar, olhando a rua. Às vezes ficavam assim, vendo as coisas passarem na calçada e comentando-as com os olhos numa linguagem construída em muitos anos de amizade. Mas estavam dife-rentes, os olhos estavam voltados para dentro, seus silêncios eram paredes sem janelas.
- Oh dois, que tristeza é esta? O gajo Parreira não ganhou a Copa? O Brasil é tetra, não estão felizes? Jogar futebol bonito não se pode mais! - o sotaque do dono encheu o bar, mas não ecoou, nem a provocação de Chico da Burra arrancou-lhes palavras. Resolveram ocupar a velha “mesa de reuniões”. Pediram uma cerveja e partiram para o salão que ficava no fundo do bar. João apoiou-se pensativo na mesa coberta de um verde roto. Copo na direita e taco na esquerda. Ficou olhando Givair preparar o jogo: bola preta no semicírculo, branca na marca da sete.
Desde a primeira partida, anos atrás, Givair incorporou a inversão das bolas, sem nunca fazer menção de se confundir. Sabia bem o que era ser caçado por brancos, lembrava dos zagueiros toscos dos seus de tempos de jogador na várzea e nos aspirantes do Corinthians. Quebraram-lhe o joelho, findou-se a carreira. Começaram o jogo, ambos desatentos, cada um com seu silêncio e preocupado com o do amigo. João parecia ter visto um encosto e Givair estar sendo caçado.
A manhã terminava num tórrido meio-dia, o som do almoço enchia o bar e chegava ao salão. Seguiram-se partidas trancadas, ambos quietos, só cantavam a jogada. - Dois no fundo, sem repique - e mal se falavam nos intervalos. Givair aflito, sempre arriscando, João rodando a mesa, procurando as melhores jogadas. O dinheiro não é meu, dinheiro atrai problema; e eu com um problema que não é meu por causa de um dinheiro que também não é meu - passou giz na ponta do taco e mirou - Branca no fundo - disse e bateu forte.Sobrou só a bola preta, girando no meio da mesa.
Não era o dia de Givair, perdeu todas, sinuca atrás de sinuca. Mesmo antes das partidas já estava em sinuca por uma dívida de jogo. Era apontador de Jogo do Bicho e usou o dinheiro da banca para fazer um bem-feito com Clarice, a paixão atual; o bem-feito saiu caro e tinha que repor o dinheiro. O tempo também caía nas caçapas.“Paga, some ou morre” eram as opções da lei que ele não tinha como cumprir. “Não importa quem deve ou quanto deve, importa é a regra: não pagou, morreu!” ouviu isso muitas vezes de Dr Deoclécio, o banqueiro. Para piorar, Fernandão, o filho do patrão, estava no comando dos negócios do pai, matava por nada e não gostava de Givair: morte certa.
A calma voltou ao bar e às ruas, o ouriço do almoço evaporou ao sol que avisava uma tarde em chamas, Chico da Burra foi para o cochilo. Givair e João conseguiram quebrar suas paredes de silêncio: João falou de seu fantasma e Givair de seu caçador. João nunca negou dinheiro, emprestava por bobagem, dava sem pensar e agora era por precisão, Givair na pior, com jura de morte. Mas o dinheiro do prêmio tinha que voltar para o dono do bilhete. Todo? Era a pergunta. Quase todo, concordaram.
Foram direto aos prédios de vidro da Paulista. Ali se paga no ato, na boca do caixa, disse Givair. Subiram a Brigadeiro castigados pelo sol, João esquecido de caminhar tranqüilo, Givair mancando um pouco mais. João assinou o bilhete e ouviram da funcionária da Caixa Econômica sobre a importância de ter uma conta, guardar o prêmio, pensar no futuro e outras histórias assombradas às quais João respondia:
- Minha filha, no céu não se cobra ingresso. Obrigado – e voltava a sorrir.
Dividiram o dinheiro em três partes: a dívida de Givair com Fernandão, o tantinho que João emprestou primeiro - por insistência de Givair – e o restante pertencia a Genésio, o dono do bilhete. Givair embolsou as notas e foi para a Central do bicheiro. João devolveria o prêmio ao dono, retornando pelo caminho que mais gostava: Rua dos Ingleses, escadaria, Treze de Maio. Queria explicar que uma parte havia ficado com Givair e levou algum tempo localizando o premiado. Encontrou o cortiço e o quarto, bateu à porta, mas não teve tempo de falar. A mulher pegou o envelope sem ver o que era, beijou-lhe as mãos e sumiu fechando a porta. João não ligou, estava em paz.
O sol que castigou o Bixiga estava mais calmo, João voltou ao bar e aceitou as provocações de Chico da Burra sobre a Copa, explicou que ganhar jogando feio era uma forma de perder - É como beijar alguém na marra - concluiu. Chico da Burra não o entendia, gostava do “patrício Parreira” e da seleção campeã. João dizia que jogaram uma coisa parecida com futebol, mas que não era. E foram com isso até o fim da tarde.
Anoitecia, João passou na Basilicata e muniu-se de macarrão, paio, três pães e queijo ralado na hora para uma sopa de feijão. No cortiço onde morava encontrou Dª Diva já na cozinha. Riram, cozinharam, conversaram suas conversas, tomaram sopa e comeram pão até tarde. João foi para o seu quarto, rezou e dormiu. Givair, que dormia constantemente ali, na cama ao lado, não tinha dado as caras. Viria depois.
João acordou sobressaltado, não teve tempo sequer de ver a cara do sujeito. Três tiros no peito devolveram-lhe à cama e a um sono do qual não acordaria.Estampidos silenciados na noite surda do Bixiga, se alguém escutou, não ouviu. A vizinhança continuou escura, apagada, alheia.Givair chegou amanhecendo, dia quase abrindo:
– Mas eu ia pagar o Fernandão, eu ia, essas balas eram minhas... eram pra mim.
Seja bem vindo.
João
Todo enrolado com dinheiro e piorava sua história com manias de bondade. Assim era João. João Aparecido dos Santos, João. Bom como poucos e pobre como todos que viviam ali: nos cortiços do Bixiga. Ilhados entre a Paulista e o Centro, resistindo horizontais e rueiros na São Paulo de prédios, muros altos e ruas vãs.1994.
João sempre esteve ali. Negro, forte, vivendo e caminhando da mesma forma: constante, seguro, sem pressa. Era como se houvesse nascido no primeiro quilombo nas margens do Rio Saracura e permanecido no Bixiga por dois séculos. Sobrevivia de bicos e do pequeno soldo de sargento reformado do exército - há mais de 30 anos. Entrou no cortiço de Dª Diva já sem a farda e sem a pressa. Nunca mais saiu dali.
Executava qualquer pequeno serviço nas casas, bares e lojas da Bela Vista. Era o quebrado, o torto, o feio, o fora de lugar que o incomodava.Primeiro ver direito, depois ver dinheiro – dizia a quem lhe contratava os serviços e a meticulosa de-dicação. Não conheceu emprego, salário, carteira, PIS, INSS e outros fantasmas - como ele dizia e completava - tenho medo dessas coisas.Trabalho é bom, mas o papel endurece a alma e cria amor pelo dinheiro, único amor que não presta - filosofava para aqueles que mantinham empregos regulares ou reclamavam por não tê-lo.
João já passava dos setenta e a idade trouxe em calma e clareza o que tirou de força. Sua ocupação real era cultivar amigos, gestos e pensamentos suaves pelas ruas do Bixiga e no bar de Chico da Burra. Dali, vigiava o passar tranqüilo dos dias e o intranqüilo das pessoas. Se brigar melhorasse a vida, galo de rinha não virava canja - brincava, com seu jeito boa praça e convivia com todos.
Teimava mesmo só em dois assuntos: jogo e finanças. Sempre invertia a bola branca com a bola sete no jogo de bilhar. Equilíbrio – explicava – branco batendo em preto já tem muito por aí, só jogo se inverter – e sorria ao adversário. A outra teima era ignorar conselhos sobre dinheiro: mão-aberta. Emprestava o pouco que sobrava entre os bicos e o soldo para qualquer um que pedisse. Sem preocupação em receber.
Os amigos ora pediam o empréstimo, ora pediam para que guardasse dinheiro. E as respostas eram sempre as mesmas, emprestando ou devolvendo o conselho: mortalha não tem bolso, caixão não tem gaveta. João recebia qualquer coisa como pagamento: reconhecimento, tapinhas, pingas, patuás, discursos, promessas de pouso e outros desvalores. Não se importava.Pagavam com o que não era pagamento e ele aceitava, agradecido e sem jeito de receber. – Não precisa...
Assim, pagaram-lhe um troco – emprestado para o remédio da criança e mamado no gargalo da cachaça – com um bilhete da federal: borboleta, já vencido. João não ligava. Aceitou, enrolou no dedo, enfiou no bolso da camisa e esqueceu.
Na semana seguinte, quarta-feira, tendo de usar a mesma camisa, não lavada, pois faltaram com o serviço - pago adiantado - de lavarem sua roupa naquela semana, acordou bem cedo e foi para a Treze de Maio cevar um bico para fechar o mês. O sol anunciava um dia quente e João caminhava ao encontro das grandes cantinas, da Achiropita e dos bicos que valiam a pena. Com o bilhete no bol¬so, caiu na tentação de conferir. Folheou por folhear as listagens da Caixa à porta da lotérica. Conferiu duas vezes: borboleta na cabeça, centena e milhar, bilhete de ponta a ponta premiado.
- Muita sorte rima com morte - disse a si mesmo, nocauteado. A manhã perdeu o rumo como suas pernas na Praça Don Orione. No bolso, o bilhete pesava como uma acusação. Estava imprestável para o trabalho.Resolveu escutar o estômago: mau conselheiro, mas bom companheiro. E o estômago vazio levou-o a uma padaria na Nove de Julho. Moderna, barulhenta, colorida, com muitas luzes e televisão ligada. As tevês vieram para a Copa do Mundo - terminada há três dias - e não davam sinais de saída. Lugar ideal para não pensar.
- Francês aquecido, pouca graxa. Um pingado! - gritou um balconista aos outros enquanto João olhava sem interesse a televisão que ainda falava na final da Copa sem graça e sem gols. João comeu e nem sentiu o gosto, pagou e saiu, sem fome nem solução. Bom companheiro, mas mau conselheiro.
Caminhou ao sol como se um fantasma o seguisse e chegou ao bar de Chico da Burra ofegando um remorso de dívida. O dono do bilhete deu sem saber, pagando o que não precisava pagar, não sabia do prêmio – pensava agitado - se soubesse ele não me dava, esse encosto não é meu – concluiu, sem saber o que fazer.
Givair entrou no bar com um bom dia intranqüilo. Eram amigos desde sempre. João viu Givair chegar ao Bixiga, se enrolando nas pernas da mãe, jogando bola na rua, na várzea, ficando moço, se enrolando em pernas de moças. Sentia-se responsável por Givair. O menino ficou órfão muito cedo e terminou de se criar por aquelas calçadas. Era um mulato alto, grande, jeito ameninado mesmo beirando os cinqüenta.
Estavam sem assunto, ambos carregando silêncios, de dentro do bar, olhando a rua. Às vezes ficavam assim, vendo as coisas passarem na calçada e comentando-as com os olhos numa linguagem construída em muitos anos de amizade. Mas estavam dife-rentes, os olhos estavam voltados para dentro, seus silêncios eram paredes sem janelas.
- Oh dois, que tristeza é esta? O gajo Parreira não ganhou a Copa? O Brasil é tetra, não estão felizes? Jogar futebol bonito não se pode mais! - o sotaque do dono encheu o bar, mas não ecoou, nem a provocação de Chico da Burra arrancou-lhes palavras. Resolveram ocupar a velha “mesa de reuniões”. Pediram uma cerveja e partiram para o salão que ficava no fundo do bar. João apoiou-se pensativo na mesa coberta de um verde roto. Copo na direita e taco na esquerda. Ficou olhando Givair preparar o jogo: bola preta no semicírculo, branca na marca da sete.
Desde a primeira partida, anos atrás, Givair incorporou a inversão das bolas, sem nunca fazer menção de se confundir. Sabia bem o que era ser caçado por brancos, lembrava dos zagueiros toscos dos seus de tempos de jogador na várzea e nos aspirantes do Corinthians. Quebraram-lhe o joelho, findou-se a carreira. Começaram o jogo, ambos desatentos, cada um com seu silêncio e preocupado com o do amigo. João parecia ter visto um encosto e Givair estar sendo caçado.
A manhã terminava num tórrido meio-dia, o som do almoço enchia o bar e chegava ao salão. Seguiram-se partidas trancadas, ambos quietos, só cantavam a jogada. - Dois no fundo, sem repique - e mal se falavam nos intervalos. Givair aflito, sempre arriscando, João rodando a mesa, procurando as melhores jogadas. O dinheiro não é meu, dinheiro atrai problema; e eu com um problema que não é meu por causa de um dinheiro que também não é meu - passou giz na ponta do taco e mirou - Branca no fundo - disse e bateu forte.Sobrou só a bola preta, girando no meio da mesa.
Não era o dia de Givair, perdeu todas, sinuca atrás de sinuca. Mesmo antes das partidas já estava em sinuca por uma dívida de jogo. Era apontador de Jogo do Bicho e usou o dinheiro da banca para fazer um bem-feito com Clarice, a paixão atual; o bem-feito saiu caro e tinha que repor o dinheiro. O tempo também caía nas caçapas.“Paga, some ou morre” eram as opções da lei que ele não tinha como cumprir. “Não importa quem deve ou quanto deve, importa é a regra: não pagou, morreu!” ouviu isso muitas vezes de Dr Deoclécio, o banqueiro. Para piorar, Fernandão, o filho do patrão, estava no comando dos negócios do pai, matava por nada e não gostava de Givair: morte certa.
A calma voltou ao bar e às ruas, o ouriço do almoço evaporou ao sol que avisava uma tarde em chamas, Chico da Burra foi para o cochilo. Givair e João conseguiram quebrar suas paredes de silêncio: João falou de seu fantasma e Givair de seu caçador. João nunca negou dinheiro, emprestava por bobagem, dava sem pensar e agora era por precisão, Givair na pior, com jura de morte. Mas o dinheiro do prêmio tinha que voltar para o dono do bilhete. Todo? Era a pergunta. Quase todo, concordaram.
Foram direto aos prédios de vidro da Paulista. Ali se paga no ato, na boca do caixa, disse Givair. Subiram a Brigadeiro castigados pelo sol, João esquecido de caminhar tranqüilo, Givair mancando um pouco mais. João assinou o bilhete e ouviram da funcionária da Caixa Econômica sobre a importância de ter uma conta, guardar o prêmio, pensar no futuro e outras histórias assombradas às quais João respondia:
- Minha filha, no céu não se cobra ingresso. Obrigado – e voltava a sorrir.
Dividiram o dinheiro em três partes: a dívida de Givair com Fernandão, o tantinho que João emprestou primeiro - por insistência de Givair – e o restante pertencia a Genésio, o dono do bilhete. Givair embolsou as notas e foi para a Central do bicheiro. João devolveria o prêmio ao dono, retornando pelo caminho que mais gostava: Rua dos Ingleses, escadaria, Treze de Maio. Queria explicar que uma parte havia ficado com Givair e levou algum tempo localizando o premiado. Encontrou o cortiço e o quarto, bateu à porta, mas não teve tempo de falar. A mulher pegou o envelope sem ver o que era, beijou-lhe as mãos e sumiu fechando a porta. João não ligou, estava em paz.
O sol que castigou o Bixiga estava mais calmo, João voltou ao bar e aceitou as provocações de Chico da Burra sobre a Copa, explicou que ganhar jogando feio era uma forma de perder - É como beijar alguém na marra - concluiu. Chico da Burra não o entendia, gostava do “patrício Parreira” e da seleção campeã. João dizia que jogaram uma coisa parecida com futebol, mas que não era. E foram com isso até o fim da tarde.
Anoitecia, João passou na Basilicata e muniu-se de macarrão, paio, três pães e queijo ralado na hora para uma sopa de feijão. No cortiço onde morava encontrou Dª Diva já na cozinha. Riram, cozinharam, conversaram suas conversas, tomaram sopa e comeram pão até tarde. João foi para o seu quarto, rezou e dormiu. Givair, que dormia constantemente ali, na cama ao lado, não tinha dado as caras. Viria depois.
João acordou sobressaltado, não teve tempo sequer de ver a cara do sujeito. Três tiros no peito devolveram-lhe à cama e a um sono do qual não acordaria.Estampidos silenciados na noite surda do Bixiga, se alguém escutou, não ouviu. A vizinhança continuou escura, apagada, alheia.Givair chegou amanhecendo, dia quase abrindo:
– Mas eu ia pagar o Fernandão, eu ia, essas balas eram minhas... eram pra mim.