Não são poucos os teóricos que apontam a origem do Romance na palavra Romanço.
A idéia seria designar as obras contadas, cantadas, escritas, lidas e ouvidas em romanço – línguas que misturavam o Latim vulgar espalhado pela Roma Imperial com as línguas dos povos dominados e a dos bárbaros visitantes. Com a queda do Império – e de sua Língua Oficial – os romanços desenvolveram-se livremente por toda a Idade Média.
A ligação com o romance seria uma forma de extensão do termo primitivo Romanço, que passou a rotular as obras de cunho popular, folclórico e caráter imaginativo e fantasista – origem do caráter ficcional do romance. O termo servia para as narrativas, tanto em prosa, como em versos.
Mas o que e como escreviam nossos autores medievais?
Romances ou novelas de cavalaria. Episódios completos e livres, para serem degustados aleatoriamente, contos-quadros completos que circulavam livremente sobre cavalos e carroças, de feira em feira, de feudo em feudo. A chave para isso acontecer foi a adoção de personagens simples, fixas e rapidamente reconhecíveis por todos, sobre as quais se narrava um feito: as proezas e amores protagonizados pelos Cavaleiros ou as mazelas pelos Pícaros.
Se unirmos essas duas vertentes de personagens, o Cavaleiro e suas virtudes e o Pícaro e suas mazelas e somarmos a eles alguns séculos de exploração literária, chegamos a Cervantes e o seu Quixote - pai ancestral do romance moderno. E olha que engraçado: Don é designativo de Cavaleiro e mancha – do de La Mancha - vem de mácula, que vem de macella que é a mãe de mazela – e assim temos o nome completo da personagem. Mas qual não é o jeitão do Quixote? Um episódico aleatório muito bem amarrado.
Sim, amigos, modo de fruição aleatória e composição episódica, não é uma novidade em termos de romance. Como também não foi uma novidade na Idade Média, já era uma forma praticada em Roma. Lucius Apuleio, mais ou menos em 160, isso mesmo, em 160, escreveu O Asno de Ouro ou Metamorphoseon Libri XI, uma composição episódica e de fruição aleatória. Mas em Roma isso também não foi grande novidade, Apuleio herdou do modo como os gregos construíram o que chamamos de mitologia. Conjunto de contos-episódios completos que em reunião formam o mitologema de um deus - fruídos, ouvidos e degustados como? Contos independentes fruídos aleatoriamente.
Mais de um amigo - essa gente culta e generosa que eu conheço – perguntou-me se eu não deveria pagar algum pedágio a Júlio Cortázar, pois este teria inventado o episódico, o aleatório e a livre escolha no romance ao produzir O Jogo da Amarelinha (Rayuela) em 1963.
Sinceramente acho que comparar qualquer coisa que eu esteja fazendo com qualquer coisa que Cortázar tenha feito é ser injusto com os dois.
Sim, o Himalaia Júlio Cortázar, aparentemente, no ocidente, foi o primeiro a utilizar de forma explícita, sistemática e sistêmica a livre escolha do leitor e o aleatório como o modo de fruição de sua obra em 1963. Mas vale lembrar que o romance só havia enveredado pelo caminho do contínuo e do não-episódico há cento e cinqüenta anos. Convenhamos, é pouco.
O romance como nós o reconhecemos, um contínuo alongando-se de uma única trama até o seu esgotamento é um filho legítimo do surgimento de uma gente letrada e com tempo ocioso para degustá-lo em longas horas sem afazeres rurais. Essa gente queria ver nas tramas sem deuses e sem amores elevados a afirmação de suas vidas pequenas, materiais e pendente a amores individualistas, falamos dos burgueses urbanos do século XVIII. O romance era a afirmação de continuidade e sentido (rumo ao seu final apaziguador) para um modo de vida transitório e carente de sentido maior. Júlio Cortázar, que sempre foi um crítico da classe e do modo de vida burguês, lembrou-se de desmontar a ilusão de sentido único atingido pela linearidade. Grande sujeito, grande autor, mas não lhe devo essa.
Porém, como não se viaja sem pedágios, vamos pagar os meus.
Quando os pais de Júlio Cortázar estavam provavelmente saindo da puberdade, em 1938, Graciliano Ramos publicava em livro Vidas Secas, uma série de contos independentes publicados e lidos aleatoriamente em jornais e revistas da época. Juntou a esses contos Mudança e Fuga para o início e o fim (que é um recomeço) e fechou o romance constituído de contos que podem ser lidos aleatoriamente.
Não viram que eu tirei tudo dele? Até os capítulos serem os nomes das personagens! Ou alguém ousou esquecer: Fabiano, Baleia, Sinhá Vitória, Menino Maior e Soldado Amarelo?
Mas tudo bem, amigos, quando os pais de Graciliano Ramos estavam provavelmente entrando na puberdade, em 1881, Machado de Assis publicava Memórias Póstumas de Brás Cubas, romance cuja fruição explora a forma fragmentária, aleatória e descontínua de capítulos independentes, ou alguém ousou esquecer o capítulo-conto Almocreve e tantos outros capítulos-poemas, capítulos-piadas e capítulos sem capítulo como o genial “De Como não fui Ministro”?
Mas não tem problema, amigos, sabem qual foi uma das fontes assumidas e já estudadas de Machado de Assis? Isso mesmo, O Asno de Ouro de Apuleio! Aquele romano do ano de 160. É, aquele que se baseou nos modos de ser da mitologia grega - e essa é que é a minha outra e verdadeira fonte.
Quando estudei sistematicamente a Mitologia Grega, o meu encantamento maior foi ter que estudar vários contos independentes, muitos até conflitantes, para formar a imagem-mitologema dos deuses. Sabia que se um dia escrevesse uma obra em prosa seria assim: contos independentes que convidassem os leitores a formarem por si o contínuo, a trama e a caracterização das personagens. E assim nasceu em mim o projeto do Bola da Vez cuja ambição maior é ser lido no metrô, essa carroça com a qual trafegamos no subterrâneo da nossa Idade Média.